Tecnologia e Arte

1. A arte tem como principal finalidade provocar para obter uma reacção. E fá-lo por um processo comunicativo, do qual, a informação é uma parte essencial. Qualquer objecto ou acção artística apenas intervém quando contém em si algo de novo. Esse aspecto é precisamente a componente informativa do todo que representa a comunicação. A informação, na arte, pode dar-se a diversos níveis. A nível de técnicas e de tecnologias, a nível estético, a nível dos diferentes significantes e dos seus significados, e, principalmente, a nível dos meios de expressão. Só contendo uma carga informativa num, ou em todos estes sectores, um objecto artístico pode intervir de uma forma crítica e de ser criativamente actuante. Actualmente, e sob a pressão de uma série de factores conjunturais e vivências exteriores “ao produtor de imagens” (como diria Nicos Hadjinicolaou), existe uma tendência para as artes se complementarem e interaccionarem. Do mesmo modo, e para além das capacidades individuais de cada meio de expressão, as possibilidades de permutação e de consequências vêem-se infinitamente alargadas, quando da utilização associada ou integrada desses meios (pintura, fotografia, slides, instalação, performance, video, ou mesmo o computador, por exemplo), donde resultam trabalhos plenos de referências e de ilações. Nessa perspectiva de complementaridade e de totalidade da percepção, e visto que cada meio “traduz” a mensagem segundo as suas características técnicas e tecnológicas (M. Mcluhan), uma determinada intenção artística veiculada por um conjunto de meios, possibilitará uma visão mais diferenciada e diversificada de si mesma e poderá ser mais facilmente apreendida na sua globalidade.

2. Neste sentido, a intervenção directa do artista, ou a chamada performance, é talvez o meio que mais se presta a esta conjugação, porque pode conter e relacionar-se facilmente com todos os outros veículos expressivos, e apresentar-se com um máximo de elementos para a sua compreensão. A performance possui uma série de componentes que podem ser explorados esteticamente. Conceitos como o tempo, o espaço, o movimento/acção, a tridimensionalidade, a cor, o som, o cheiro, a luz, e, principalmente, a presença física do artista como despoletador e factor de consecução dessa intervenção, interligados a uma quantidade ilimitada de objectos, intençóes, técnicas e tecnologias, revolucionam completamente a noção de artes plásticas”, conferindo-lhe uma outra dimensão, e proporcionando ao público na sua plenitude comunicacional e informacional, aquilo que se pode considerar por “arte viva”. Comum a todas as performances estão ligados dois conceitos básicos: o espaço onde esta se desenrola, e o tempo em que a mesma se desenvolve. O tempo e o espaço, aqui, são eliminados como conceitos separados e formam como que a ‘tela” onde tudo pode/vai acontecer. Estes dois conceitos definem o limite espaço-temporal dentro do qual a acção se concretiza, e são importantes para uma leitura e compreensão da performance como meio de expressão autónomo. Pegando na opinião de Décio Pignatani sobre o happening, a performance também se pode considerar a “Arte de acção, contra arte de contemplação”. A presença física do operador estético é um dos factores essenciais da “arte viva”. Viva porque contém precisamente a forma viva do seu criador. Viva porque o (pro)pulsar/ o movimento/ o respirar do corpo faz parte integrante da intervenção artística como instigador do desenvolvimento e da concretização da mesma. O performer é o despoletador da acção, e todos os seus gestos, toda a sua expressividade mímica emite informações, parafraseando uma linguagem rica de signos e significados. A circunstância do performer, como agente estético, estar no centro da acção, confere a esta uma sensação de tactilidade que representa, de certo modo, (um)a ligação entre ele e o fruidor. A esta faceta “táctil” da performance, sobrevem imediatamente a tridimensionalidade. O volume dado pela multiplicidade de objectos e também pela presença, em movimento, do operador estético. Embora o movimento nem sempre esteja explícito nos diferentes objectos que integram a acção, ela existe na animação impressa aos objectos manipulados, no balanço/ritmo sonoro, na luz/cor, ou ainda pelo movimento próprio de outras utilizações simultâneas como a projecção de diapositivos, o video, etc., etc.. A exploração da cor é uma referência directa á integração da pintura na performance, assim como a tridimensionalidade é uma inclusão nesta do conceito de escultura. Os diferentes tipos de arte convergem, na performance, para em conjunto resultarem numa interacção expressiva, assim como a nível tecnológico os diversos suportes se haviam conjugado para dar origem a uma inter-dicção de meios de comunicação. “os meios, como extensões dos nossos sentidos, estabelecem novos índices relacionais, não apenas entre os nossos sentidos particulares, como também entre si, na medida em que se inter-relacionam.”, escreve M. Mcluhan.

O som, outro elemento de leitura da performance, pode apresentar-se sob diversas formas. O ritmo, a melodia, ou unicamente o ruído, representam estruturas sonoras que nem sempre são um simples acessório, mas sim um conjunto de signos a serem descodificados. Nesta área englobam-se, além da voz, tanto os sons produzidos por instrumentos próprios, e/ou considerados impróprios”, como os sons ambientais ou os resultantes de actividades industriais. Natural ou artificial, temos também a luz como veículo de leitura. Artificial pode ser uma fonte de efeitos, pela possibilidade de transformação e de transmutação cromática dos diferentes elementos. A performance, enquanto processo interventivo deve dar, mediante a exploração dos diversos campos comunicacionais, a percepção do simultâneo que, na prática, já vivemos. Edmund Carpenter e Marshall Mcluhan escreveram na introdução do seu livro “Revolução na Comunicação”, que “Os meios electrónicos de comunicação do homem pós-letrado contraem o mundo, reduzindo-o às proporções de uma aldeia ou tribo onde tudo acontece a toda a gente ao mesmo tempo: todos estão a par de — e, portanto, participam em — tudo o que está acontecendo, no minuto em que acontece.” A performance proporciona e reivindica também uma leitura simultânea de todos os aspectos que a compõem, no momento em que acontece. O fruidor deverá fazer uma leitura integral da intervenção estética, como um todo que ela na realidade é, e não se deve contentar em apanhar somente o significado daquilo que vê, pois este é apenas um dos componentes do acto artístico. Para isso tem que haver um sincronismo no emprego dos sentidos, para uma boa decifração e compreensão da performance e, consequentemente, uma participação crítica.

A súmula de uma performance reside precisamente no binómio acção/reacção. E aqui aplica-se o pensamento de Marcel Duchamp quando afirmava que “O artista estabelece sozinho o acto de criação, pois o espectador estabelece o contacto da obra com o mundo exterior, decifrando e interpretando suas qualificações profundas, e, agindo desta forma, acrescenta a sua contribuição ao processo criativo”. Entre o operador estético e o público existe uma relação empática directa, pela participação deste no trabalho daquele, onde o feed-back poderá, inclusive, modificar o próprio rumo de acção, alterando sempre o seu significado. Como a leitura da performance dá-se em simultâneo com o seu desenrolar, e como a reacção dá-se sincronicamente com a leitura, o feed-back é imediato, passando por vezes, o consumidor a ser também o produtor e vice-versa. O facto da acção se desenrolar perante o fruidor, está directamente relacionado com o extraordinário desenvolvimento dos meios de comunicação, isto é, de termos a possibilidade de tomar conhecimento das diferentes ocorrências em qualquer parte do mundo simultaneamente a elas acontecerem. A performance contém esse aspecto de sincronismo de acção/reacção que torna a arte viva. As pessoas assistem ao nascer e ao término da acção. Vêem quem cria e como se executa (ajudam, por vezes, a criá-la), reagindo no momento em que esta toma corpo. A performance possibilita o criar-se e o estar ali para ver. Possibilita a (in)formação integrada e instantânea. Apela à participação. O que contém algo de umbilical. A circunstância da intervenção estética ser usufruida colectivamente, representa um extraordinário avanço da arte no sentido do social. Deste modo, a transmissão da ‘mensagem” resulta numa experiência comum. Numa altura em que os meios de comunicação sofreram uma evolução espantosa, mas onde, paradoxal- mente, não existe comunicação entre as pessoas, o contacto directo entre o público e a obra/artista ganha uma outra intensidade, ao (re)estabelecer o diálogo entre os seres em si e entre os seres e os objectos/actos artísticos.

A interacção neste tipo de arte faz-se não só entre os diferentes materiais e tecnologias, como entre o criador/acção, acção/fruidor e fruidor/criador. São precisamente estas relações que a performance vem provocar: o diálogo artista/público, mediado pelo desenrolar da obra. E, se por um lado deixa de existir o indivíduo possuidor da obra única (quadro/escultura), do qual é o único usufrutuário, para passar a haver uma criação artística que vai beneficiar o colectivo, por outro lado mantém-se, ainda, o carácter do único, porque de uma maneira geral estas intervenções não são repetidas, ou pelo menos nunca o são completamente. Quanto ao aspecto da performance ser, de certa maneira, a “arte do efémero”, prende-se com o facto da sua rápida apresentação e assimilação. O que numa sociedade de consumo me parece perfeitamente natural e integrado no contexto social.

Fernando Aguiar Abril 1984

Adaptação do texto Performance. ou a interacção dos sentidos, incluido no livro Poemografias/Perspectivas da Poesia Visual Portuguesa, Edição ulmeiro, Lisboa 1985.

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